Aeris em Final Fantasy Crisis Core (crédito: divulgação)

A teoria musical por trás de Aerith’s Theme, de Final Fantasy VII

Não faço nenhuma questão de esconder que Final Fantasy 7 é meu jogo favorito e que, 20 anos atrás, seus temas plantaram em mim a paixão por músicas de games (e, mais tarde, a vontade de compor as minhas próprias).

O tema da personagem Aeris (ou Aerith, no original japonês) é, para mim, um dos mais bonitos já escritos para um jogo. Mesmo tirando questões de gosto pessoal, oferece uma série de exemplos incríveis do uso de ferramentas teóricas em uma composição. Neste post em parceria com a Academia de Composição, vamos observar algumas delas analisando a versão para piano do tema.

Caso você não tenha conhecimento de teoria musical, sugiro assistir a este vídeo primeiro, onde apresento alguns conceitos básicos. O e-book gratuito “Essencial de Teoria Musical para Compositores” também pode te ajudar.

Narrativa

———-Spoilers à frente————

(o jogo é de 1997, mas não quero estragar a história se você ainda não jogou!)

Aeris é uma personagem delicada e muito simpática, vendedora de flores. Ela acompanha o grupo principal do jogo até, em certo ponto, morrer.

Sendo ela uma personagem central da trama, seu tema é tocado não apenas em sua primeira aparição, mas também tem alguns fragmentos reutilizados em várias outras músicas do game (por exemplo quando o protagonista Cloud acorda numa igreja, amparado por ela, e reconhece ter comprado uma flor com ela numa área pobre da cidade). Após sua morte, o tema ressurge quando os personagens falam sobre ela – a música evoca tão fortemente sua imagem que quase podemos sentir a presença dela no meio do grupo.

Logo, esta peça tem um impacto emocional muito forte nas pessoas que jogaram o game não apenas por sua qualidade e pelos recursos musicais empregados, mas também – e principalmente – pela forma como ajuda a narrativa do jogo, que já é forte por si própria. Ajudar a narrativa é talvez mais importante função de qualquer trilha sonora (inclusive em filmes, seriados e outras mídias).

———-Fim dos spoilers————

Elementos de composição

Como elementos gerais da composição, podemos apontar:

  • Um motivo forte e recorrente
  • Harmonia sofisticada: uma variedade de empréstimos modais surge o tempo todo
  • Arranjo se utiliza da região aguda na maior parte do tempo, remetendo à leveza da personagem

Análise dos motivos

A peça é muito bem amarrada estruturalmente. Todos os temas são construídos a partir de dois motivos básicos (eu explico brevemente neste vídeo o que são motivos):

Motivo 1

Motivo 1

Motivo 2

Motivo 2

O Motivo 1 é apresentado logo no início da música (0:00) e desenvolvido ao longo do Tema A (0:00-0:35). Ritmicamente, é composto por duas colcheias e uma mínima pontuada; melodicamente, é um arpejo (notas de um acorde tocadas separadamente) ascendente.

Tema A

Tema A

Logo na segunda frase, Uematsu repete o motivo, mas desta vez no sentido descendente. Na terceira, emenda versões ascendentes e descendentes do motivo, usando um movimento em grau conjunto (ou seja, para uma nota adjacente da escala) no final de cada fragmento.

Tema B

Tema B

No Tema B (0:35-1:11) ele desenvolve ainda a mesma ideia rítmica; melodicamente, usa apenas movimentos ascendentes em grau conjunto. Aqui, ele também começa a usar o Motivo 2 na contramelodia, ao mesmo tempo que retoma o Motivo 1 na voz principal.

Tema C

Tema C

O Tema C (1:11-1:41) é construído em cima do Motivo 2 – porém, aqui o compositor usa o recurso da diminuição rítmica (ou seja, tocando as notas com metade da duração original). Repare como a pausa é importante nas duas iterações deste motivo.

A frase principal deste tema é um novo motivo, o Motivo 3, que parte da diminuição do Motivo 2 e acrescenta duas mínimas ao final.

Empréstimos modais e acordes com nona

A harmonia de Aerith’s Theme também é muito interessante:

Aeris' Theme

Lead Sheet – Aerith’s Theme

A música está na tonalidade de Ré Maior (o que vemos tanto pelo acorde inicial/final quanto pela armadura de clave). No entanto, Nobuo Uematsu não se prende estritamente aos acordes e notas deste campo harmônico, explorando a tonalidade de forma muito mais ampla.

Logo no segundo acorde ele já apresenta um acorde de Lá Menor. Na tonalidade de Ré Maior, temos como sétima da escala a nota Dó Sustenido, que, sendo terça maior de Lá, nos traria um acorde de Lá Maior, não menor.

Esse acorde de Lá Menor vem, portanto, de uma das tonalidades vizinhas de Ré Maior – já veremos de qual. Mas o fato é que as primeiras frases já ficam alternando as notas Dó Natural e Dó Sustenido, o que por si só já brinca com a nossa audição.

Na repetição que começa no compasso 5, Uematsu nos leva de novo pra acordes de outra tonalidade: no caso, Bb e Gm. Parando para analisar, podemos ver que tanto Am quanto Bb e Gm pertencem ao campo de Ré Menor – ou seja, trata-se aqui do uso de empréstimos modais que quase nos levam a uma modulação, não fosse o final do tema novamente em Ré Maior.

Nos temas B e C, Nobuo passa a se manter dentro da tonalidade, optando por explorar outros graus.

É interessante também notar o uso frequente de acordes com nona. O Prelúdio de Final Fantasy, presente em todos os jogos da série, é feito apenas sobre esse tipo de acordes – o que me parece uma forma muito sutil e engenhosa de dizer que ambas as músicas pertencem ao mesmo universo de jogos:

Espero que este post tenha sido interessante e útil para você!

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